sábado, 5 de setembro de 2009

Rever texto de Luiz Tatit "Música para reouvir"



Hoje, cada um pode gravar o seu disco e colocá-lo na internet em busca de um ouvinte que nem chega a ouvi-lo por estar às voltas com suas próprias composições, que também serão lançadas na rede para que alguém as descubra e mostre aos outros. Esses outros geralmente estão ocupados, pois criam repertório para uma próxima investida musical que, sem gravadora e sem distribuidora, dependerá de divulgação em seus respectivos blogs, voltados aos internautas que ainda ouvem uma coisa ou outra se a fonte for conhecida ou bem recomendada. Mas mesmo esses internautas só ouvem trechos de cada música, saltando rapidamente de uma para a outra, colhendo impressões para realizar um novo trabalho que ficará disponível online.

A facilidade técnica de produção e a velocidade de circulação das obras musicais estão forjando uma realidade sonora com a qual nem sonhávamos décadas atrás. A ampliação desmedida do universo dos criadores vem abalando a capacidade de absorção dos consumidores. O fã que comprava o CD do artista agora vem presenteá-lo com o seu próprio, gravado em excelentes condições técnicas e ainda valorizado por um bom suporte gráfico que torna sua capa e seu encarte bastante atraentes. Mas o artista, que já recebera algumas dezenas de outros CDs e DVDs de outros fãs, provavelmente não terá tempo de ouvi-los (ou vê-los) pois está enfurnado num estúdio preparando novo trabalho que deverá compensar a pouca divulgação e acolhida do anterior, cujo lançamento coincidiu com uma época em que os ouvintes cuidavam de seus próprios discos...

Difícil compreender as novas relações de produção e consumo anunciadas no alvorecer do século 21. Não sabemos nem se estão se concretizando ou se virtualizando. Não podemos imaginar suas conseqüências e muito menos avaliá-las com os critérios ideológicos ou científicos erigidos no século passado. Por enquanto, parece-nos suficiente reconhecê-las como fenômenos irreversíveis que exigem a formação de uma nova mentalidade para o acompanhamento de seus efeitos sociais, culturais e estéticos. Nem podemos dizer ainda que algum dia estaremos em condições de julgar essas novas relações, uma vez que a compreensão, como a concebemos até hoje, pressupõe um grau de desaceleração que estará sempre em defasagem com a dinâmica alucinante da veiculação sonora dos nossos dias.

Talvez esse panorama descrito até aqui traduza mais uma tendência do que a realidade deste início de 2007. Grande parte da cena musical ainda é ocupada por nomes que se firmaram num contexto em que artista era artista e público era público. Uns faziam e outros ouviam. No entanto, mesmo esses artistas já se ressentem da pouca disposição do público para ouvir novas canções. Prefere reouvir a ouvir. As novas composições que tanto significam para o autor são apresentadas com extrema parcimônia, sempre em meio a muitas já consagradas. Ouvir é uma concessão da platéia, reouvir é o seu desejo. Ouvir é se sentir no centro do bombardeio diário das informações não solicitadas, reouvir é se proteger do bombardeio e poder escolher o que já é significativo. Outro sinal da mesma tendência manifestou-se há pouco na recepção ao novo e esperado disco do Chico (Carioca). Toda a elaboração cancional ali investida foi descartada na primeira, e talvez única, audição. Nenhuma faixa fez pensar em Quem te viu, quem te vê e muito menos em Construção. O prestígio do compositor garantiu a presença de todas as novidades no repertório do show, entretanto, do ponto de vista da platéia, era como se houvesse um contrato implícito: nós ouvimos, mas depois você canta “as boas”.

A preferência por obras assimiladas é um recurso, na verdade muito humano, de preservação de identidade. Aquilo que nos atrai é parte de nós que se desprega, mas que queremos de volta para nos sentirmos inteiros. É esse, aliás, o sentido de “objeto”. O sujeito o persegue não por veleidade, mas porque constitui um pedaço de si que precisa ser recuperado (Pedaço de Mim, do mesmo Chico, versa sobre isso). Assim, não há mal nenhum em querer reouvir. É um modo de repassar na memória tempos já vividos, em geral associados a idéias ou situações prazerosas, e de realinhavar conteúdos que vagam avulsos em nosso interior. É um modo de dar tempo ao tempo e de revigorar nossa identidade diante de um mundo cujo andamento açodado tende a nos despedaçar por dentro. Nessa linha, é interessante observar que os shows de hoje são sempre rituais de comunhão que atingem o seu ápice quando a platéia canta com o artista aquilo que já reouviu muitas vezes. Todos se juntam em defesa de um patrimônio subjetivo e coletivo que a “realidade” fora do auditório teima em dilapidar.

Acontece que a ampliação espantosa da faixa dos criadores, que poderia ser um bem em si, acaba produzindo no ouvinte uma espécie de defesa da própria sensibilidade (“Socorro, eu não estou sentindo nada”, diz a letra de Alice Ruiz). São tantas as canções interessantes e tantos os sentimentos transmitidos que já não podemos mais discerni-los nem incorporá-los. (“Tem tantos sentimentos / Deve ter algum que sirva”, idem). Eles nos escapam em sua maioria. Mas basta que alguns sejam fisgados e reproduzidos pelos veículos de comunicação, ou até pela atuação direta dos artistas que se esmeram em promover o próprio trabalho, para termos a comprovação de que as canções seguem respondendo ao anseio vital de desaceleração do ritmo de vida do ouvinte e continuam se convertendo em verdadeiros Leitmotiven de sua história.
Houve época em que gravar um disco era tudo que um artista poderia desejar. E só se pensava no registro de um segundo se a venda e a repercussão do primeiro fossem satisfatórias. Hoje, um CD gravado é ponto de partida para uma almejada carreira musical e, independentemente de qualquer sucesso de venda ou de crítica, o artista já se aventura num segundo disco, num terceiro, e assim por diante, até que uma canção “emplaque”. Emplacar, nesse universo, significa “permanecer”, virar objeto de reprodução na seqüência ininterrupta das criações do artista. No fundo, significa interromper momentaneamente a própria voracidade de criação em nome de um formato que precisa ser reouvido e incorporado aos ritos (ou apresentações) cancionais do autor. A produção desenfreada dos dias atuais não busca o novo em si, mas o que pode permanecer dentre as numerosas criações. Claro que existem graus de permanência. Algumas composições se transformam em hinos do autor e atingem uma permanência absoluta (ex. País Tropical, de Jorge Ben Jor), outras circulam apenas entre os seguidores mais próximos do artista, outras serão reconhecidas anos mais tarde, num contexto sociocultural diverso. E há, ainda, as que permanecem, mas são abandonadas pelo próprio autor, por desinteresse (ex. A Banda, de Chico Buarque) ou por razões de foro íntimo (ex. Quero Que Vá Tudo Pro Inferno, de Erasmo e Roberto Carlos). Qualquer desses graus tem sua importância e contribui para a formação das identidades pessoais e do patrimônio coletivo. E ao artista é imprescindível atingir algum grau de permanência, embora isso não lhe seja suficiente. Em geral, quanto mais o público quer reouvir, mais o compositor lhe propõe novidades, até que uma delas outra vez emplaque. Terá o artista, então, o melhor testemunho da própria vitalidade.

Jamais se produziu tanta canção de qualidade (maior ou menor) no Brasil como nos dias atuais. A oferta supera a demanda em diversos itens. É notável a rapidez com que um ouvinte se transforma em artista, muitas vezes mais produtivo que seus ídolos, e alimenta com suas composições um mercado já inflacionado de bons trabalhos, deixando perplexos tanto os demais ouvintes quanto a própria classe musical. Quanto aos instrumentistas de hoje, pode-se dizer que, experiências à parte, começam suas carreiras no ponto em que seus reverenciados mestres terminaram e atingem metas muito mais exigentes. O ofício de cancionista, embora ainda não seja reconhecido pelas instâncias formais, já é uma profissão concreta e promissora na cabeça dos jovens de agora e isso os leva a compor desde muito cedo. O problema é dar vazão a toda essa fecundidade num formato que evite o descarte sumário, decorrente do atropelo informativo, e que estimule de algum modo a reaudição.
A internet é um campo a ser explorado, mas não faz parte de suas atribuições avalizar os produtos que circulam na rede. Sua feição caótica, embora proporcione eventuais descobertas, produz desconfianças e indiferenças incompatíveis com o universo cancional. As rádios de vasta audiência são há muito tempo cúmplices de conglomerados comerciais e só operam na faixa de grande consumo, o que as distancia cada vez mais do antigo papel de principal divulgadora das variedades sonoras de todo o país. Do mesmo modo, as televisões abertas (exceto as culturais) retiraram os musicais de sua programação, restringindo-se à utilização de canções “eleitas” do mainstream para compor as trilhas de suas novelas. Mas rádio e televisão, mesmo que quisessem novamente apoiar o segmento musical, não mais dariam conta. As condições quase provincianas das décadas de 1960 e 1970, que proporcionaram a reunião de todos os artistas importantes numa mesma emissora, a Record, são irrecuperáveis e inconciliáveis com o mundo contemporâneo. Sobram as nostalgias: nunca houve geração musical como a daqueles anos! O auge de nossa música popular foi a bossa nova! Nunca houve tanta vibração e qualidade musical como na era dos festivais! Etc.

Talvez nunca tenha havido, isto sim, tanta concentração e visibilidade das principais tendências da música brasileira como naquele período. Talvez nunca tenha havido uma geração tão reouvida e, portanto, tão fundamental na formação da nossa identidade. Quando suas obras não nos eram apresentadas diretamente pela televisão, desfilavam nas paradas de sucessos programadas por emissoras de rádio. Os cancionistas formavam uma classe bem delimitada e inteiramente conhecida do público. Embora o ingresso no mundo artístico fosse mais restrito, depois da gravação do primeiro disco e de sua inserção na então “pequena” mídia disponível, a passagem do ouvir ao reouvir era quase automática.

Atualmente, não é exagero dizer que surgem novos artistas todos os dias. Logo os teremos todas as horas, todos os minutos, e, claro, teremos cada vez menos disposição para ouvi-los. A mídia se retrai e só reconhece uma parcela mínima desse imenso contingente de criadores que se aglomera nos espaços virtuais, nas filas de patrocínio e nos palcos alternativos de todo o Brasil. Daí a importância atual de algumas instituições bancárias, ao lado de empresas mais arejadas, que vêm investindo em projetos de revelação e difusão de talentos ao menos nos principais centros de cultura do país. Daí a importância do Sesc, outro núcleo extraordinário de veiculação das iniciativas artísticas de alto nível, que, particularmente em São Paulo, realiza um trabalho ininterrupto de circulação das artes brasileiras - e que, neste momento, vê parte de seus empreendimentos ameaçada por lamentáveis perdas de arrecadação.

É no interior dessas salas de espetáculo que a música brasileira pulsa com o mesmo vigor de todos os tempos. Quem as freqüenta tem tido oportunidade de se imbuir das incríveis dicções cancionais de nossa época. Em sua maioria, elas não cabem mais na grande mídia, mas pela amostra de poucos que puderam migrar desse mundo artístico periférico para o centro de médio e grande consumo, onde podem ser reouvidos (citemos, entre muitos, os compositores-intérpretes Zeca Baleiro, Zélia Duncan, Lenine, Arnaldo Antunes, Chico César e Vanessa da Mata), já vemos que nada devem à geração dos anos sessenta e setenta. Com a vantagem de que ainda estão no primeiro tempo de sua partida musical.

*Luiz Tatit é fundador do Grupo Rumo, compositor, cantor, violonista e professor do Depto. de Lingüística da Faculdade de Filosofia da USP. É autor de O Cancionista (Edusp, 2002)

Artigo publicado no suplemento Aliás, jornal O Estado de São Paulo, em 30 de dezembro de 2006.

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